A proposta da Galeria Rio Cinético é experimentar velhas imagens do Rio de Janeiro para inventar relações e novos modos de ver a cidade. Mais do que informar ou representar, queremos propor fabulações e memórias sobre os passados e futuros da imagem ao retomar materiais diversos – fotografia, cinema, material da imprensa e outros documentos. São como lampejos frágeis que as imagens nos ligam ao que foi. Ver, rever, selecionar, montar e desmontar imagens e narrativas da vida carioca é também abrir um fosso entre a história dos acontecimentos e a história das imagens.
Curadoria: Andréa França
A diretora retoma fragmentos do filme Terra Encantada (1923) que mostram a Exposição Internacional do Centenário da Independência, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, em 1922. Para a construção da monumental exposição, o histórico morro do Castelo foi completamente demolido e seus habitantes expulsos de suas casas. Essa história é contada pelas imagens que restaram do filme e pelas fotografias de Augusto Malta e Guilherme Santos.
Andréa França
Delírio belga foi realizado a partir do filme original conhecido como Nossos soberanos no Brasil, registro feito por dois cinegrafistas militares, sargentos do exército belga, que acompanharam a viagem do Rei Alberto I e da Rainha Elisabeth ao Brasil em 1920. A versão digitalizada dos nitratos originais foi cedida pela Cinemateca Real Belga para a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e exibida durante a Mostra de Cinema Rio Desaparecido promovida em parceria com o Rio Memórias.
Delírio belga nasce do movimento de ver e rever inúmeras vezes as imagens da viagem dos reis belgas em especial aquelas gravadas a bordo do Couraçado São Paulo e na cidade do Rio de Janeiro. Busca estabelecer um diálogo entre fragmentos de Nossos soberanos no Brasil e artigos sobre a viagem publicados pela imprensa brasileira da época, charges em revistas populares, material iconográfico e trabalhos acadêmicos recentes. É um trabalho de descrever os registros filmados, parar, repetir e descobrir camadas sonoras, gestuais, temporais. A trilha sonora de Gabriel Falcão favorece sobremaneira o movimento reflexivo e sensorial da montagem que extrai do documento visual emoção, fragmentos de memória, imaginação. O curta mostra o que está nas imagens – seja no campo ou no extracampo – mas que não é visível de imediato e requer um olhar mais atento. Identifica, nesse processo, elementos que assombram as imagens da cidade carioca que sonhava em ser um dia como as metrópoles brancas europeias.
Andréa França
Leia o ensaio de Fred Coelho sobre o filme “Delírio Belga” aqui
Um fragmento do filme Terra Encantada (Silvino Santos, 1923) dá início a Estiva. Nesse plano, há um grupo de homens, mulheres e crianças de costas para a câmera na antiga Avenida Beira Mar. Eles olham para a paisagem da baía onde um navio se aproxima ao longe. Estariam esperando a chegada do navio? Estiva mostra o Rio de Janeiro dos imigrantes no início do século XX. Imigrantes com passagens pagas pelo governo brasileiro viajavam na terceira classe no porão dos navios. O projeto político do país era promover o povoamento do solo nacional e a criação de núcleos coloniais com estrangeiros pobres dispostos ao trabalho e de pele branca.
O curta evoca as péssimas acomodações dos navios de imigrantes e o descaso com esse passageiro através das cartas escritas aos seus familiares na Europa, de depoimentos deixados, passaportes e documentos diversos. Há a saudade do que ficou para trás, a sensação de provisoriedade e a alegria de chegar na terra das oportunidades. As fotografias que mostram o Cais Pharoux (atual Praça XV) e o seu entorno buscam evocar o olhar daquele que chega na capital vindo de longe. Outro filme retomado exibe a chegada dos estrangeiros na Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, localizada em São Gonçalo.
Andréa França
Leia o ensaio de Eduardo Morettin sobre “Estiva” aqui
Vermelho Guanabara é um experimento inspirado nos filmes de sinfonias urbanas do início do século XX. Manhatta (Strand e Scheeler, 1921), O homem com a câmera (Vertov, 1929), Berlim – sinfonia de uma cidade (Ruttmann, 1927), São Paulo – sinfonia da metrópole (Lustig e Kemeny, 1929), para citar alguns, são ensaios cinematográficos que oferecem um precioso vislumbre sobre as novas metrópoles então em crescimento. Com Vermelho Guanabara, é a vez da cidade do Rio de Janeiro dançar o ritmo contagiante e contraditório do progresso. Na lacuna das imagens que faltam – do cinema brasileiro, da cidade febril, das mulheres e dos homens que lá viveram – o experimento em vermelho tece sua própria sinfonia. Flagrantes de sonhos, bons e ruins, da cidade, sua imagem ansiada e seus habitantes são selecionados e associados em duas telas simultâneas.
Andréa França
Leia o ensaio de Lila Foster sobre “Vermelho Guanabara” aqui
Ressaca é um experimento sonoro e visual feito a partir de imagens da região do Passeio Público no centro da cidade do Rio de Janeiro dos anos 1920. Primeiro jardim público do país, o Passeio Público passou por várias transformações assim como serviu a variados interesses econômicos. Ressaca recorre a material de arquivo dos primeiros cinegrafistas (Alberto Botelho, Silvino Santos, entre outros) e fotógrafos (Marc Ferrez, Augusto Malta), assim como publicações na imprensa da época sobre a então capital da Primeira República, para mostrar as imagens de sonho embutidas nos projetos do Passeio Público e da cidade.
Vemos imagens líricas e de celebração da capital que avança em direção ao progresso e à modernidade das metrópoles europeias. São avenidas largas, homens lendo jornais, contemplando o horizonte ou passeando pelos jardins do Passeio. Ressaca é um breve lampejo sobre essa região atropelada por transformações paisagísticas e arquitetônicas. De um projeto de jardim público com um mirante para apreciar o horizonte e o mar, o Passeio vai se distanciando da orla e perdendo seu charme. Entre as várias obras que se interpuseram entre os jardins e a orla estão: a avenida Beira Mar, o Cassino Beira Mar e o Teatro Cassino (os dois últimos desapareceram logo depois de construídos sem deixar vestígios).
As imagens em movimento que Ressaca retoma são restos de filmes que não existem mais integralmente. São fragmentos. Neste sentido, as perguntas presentes durante o processo de montagem e realização foram: o que podemos fazer com esse material? O que essas imagens esmaecidas nos dizem do Rio de Janeiro (e o que querem ocultar)? Como manejar a mudez dessas imagens silenciosas? Olhar de modo atento para esse material é descobrir, entre outras coisas, existências perdidas no tempo que ora nos lançam um olhar do passado e ora nos dão as costas, indiferentes ao cinema.
Andréa França
Leia o ensaio de Ana Maria Mauad sobre “Ressaca” aqui