“Aqui governa o povo!”. “Haja revolução!”. Esses dizeres nada sutis — ou, nas palavras da Gazeta do Rio de Janeiro, “a exaltação de sentimentos ilegais” — foram gritados em plena praça do Comércio, no centro da cidade, no dia 21 de abril de 1821.
Ali, eleitores se reuniram para escolher as comissões de deputados que seriam enviadas para as Cortes, em Lisboa. Também tomariam conhecimento e comentariam as instruções deixadas pelo rei d. João VI a d. Pedro, que ocuparia a regência do Brasil. A reunião, que deveria ser pequena e discreta, se tornou uma assembleia de massa, resultando em mortos e feridos.
O encontro foi convocado com intuito de acalmar “o furor das ambições” que tomou o Rio de Janeiro nos primeiros meses de 1821. No dia 26 de fevereiro, d. João jurara publicamente as bases da Constituição que seria elaborada pelas Cortes, em Lisboa. Logo na sequência, informara seu regresso a Portugal. Mas tais anúncios fizeram o oposto de dissipar inseguranças e incertezas quanto ao destino do Rio de Janeiro e do Brasil. Havia ainda os mais radicais, que julgavam serem medidas insuficientes. Quartéis, cafés e lojas da rua Direita tinham se tornado “o teatro da mais desenfreada liberdade de falar”, — como disse um ministro à época.
Esses debates chegavam à corte palaciana em tom de apreensão sobre os destinos do reino. “Todos anteveem que nada do que hoje existe pode se conservar”, afirmou o mesmo ministro.
O local onde a reunião ocorreria, o recém-inaugurado edifício da Bolsa (atual Casa França-Brasil), recebeu arquibancadas para acomodar os eleitores que tinham direito à escolha da deputação brasileira. Mas o número de presentes — muitos de perfil nada moderado, como era o esperado que o fossem — foi muito além do imaginado.
Quando o juiz que presidia a sessão começou a ler os nomes que integrariam o ministério do príncipe-regente, sua fala foi sufocada por clamores pela implantação imediata da “Constituição Hespanhola” — aprovada em 1812 e grande inspiração para liberais mais radicais. Os revoltosos exigiram também a permanência de d. João VI no Brasil e a proibição de qualquer desembarque não autorizado nos portos do Rio de Janeiro. Conseguiram apoio de alguns militares e permaneceram na Praça do Comércio madrugada adentro.
Às quatro manhã do dia 22 de abril, as tropas legalistas marcharam em direção ao centro do Rio. Um soldado foi esfaqueado e morreu. Sem esperar ordem superior, fuzilaram o edifício da Bolsa e adentraram o recinto brandindo baionetas. A multidão foi dispersada, mas às custas de dezenas de vidas. Segundo um relato anônimo da época, “pessoas comuns foram mortas indiscriminadamente […] Os cadáveres foram levados clandestinamente para o Arsenal da Marinha, e ali foram enterrados em segredo”. No dia seguinte, o edifício da Bolsa amanheceu pintado com os dizeres “Açougue dos Bragança”.
Às oito da manhã, o decreto no qual d. João VI aceitava a constituição espanhola foi revogado. O rei alegou que fora redigido “por ordem de homens mal-intencionados, que desejavam a anarquia”.
Esse foi o último ato oficial de d. João VI no Rio de Janeiro. Após 13 anos, Lisboa voltava a ser a morada do rei, e o Rio deixava de ser a sede do reino.
Referências Bibliográficas
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Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz.