A conquista da urbanização

Eliana Sousa Silva, ativista da Maré e coordenadora da Redes da Maré, conta que em sua primeira gestão na presidência da Associação de Moradores e Amigos da Nova Holanda, muitas obras anunciadas pelo Projeto Rio não tinham saído do papel e que os moradores ainda estavam em mobilização pela água e energia elétrica — na Nova Holanda e em outras favelas da Maré. 

Eu fui no BNH para saber o que eles poderiam fazer, porque eles ainda estavam com projetos na Vila do João, Vila do Pinheiro, e lá na sala de espera tinha uma revista falando do Projeto Rio como um legado. E nessa revista, lendo sobre o Projeto Rio, eu descubro que eles dizem que as 6 favelas que eles chamavam de consolidadas, que originaram, que eram onde estavam as palafitas, eles iam tirar as palafitas, construir novos conjuntos habitacionais e iam fazer todo o saneamento básico das 6 favelas. E nessa revista eles diziam que já tinham feito. Era uma prestação de contas que o Ministério do Interior fazia, ou seja, o dinheiro veio. Porque era Ministério do Interior e BNH que recebiam o dinheiro. Cara, quando eu entrei na sala para falar com o diretor, na época, […] Eu falei: “gente, o esgoto e a água não foi feito. Eu vim aqui justamente para tentar reivindicar sobre isso”. Isso aqui é um escândalo. Quando eu mostro isso ao cara, ele ficou também, consternado. E aí, o primeiro saneamento básico das 6 favelas… porque aí, o que é que eu faço: eu pego aquilo, chamo os outros presidentes, os 5. […] A gente fez passeata para garantir rede de água potável, esgotamento sanitário, rede pluvial, canalização dos valões, onde hoje tem a Praça do Valão, tem a ver com isso. 

Manifestação dos mareenses pelo esgoto, água encanada, canalização dos valões etc. Acervo Pastoral de Favelas

Esse trecho do depoimento de Eliana é mostra de que as obras de urbanização na Maré não vieram de maneira fácil. Ainda que muitas vezes tenham sido anunciadas e prometidas, os moradores tiveram que permanecer atentos e mobilizados para que elas de fato se efetivassem. 

O Projeto Rio mudou o território de modo profundo, dando origem a novas localidades e reduzindo consideravelmente o número de palafitas na área — elas seriam totalmente erradicadas no começo da década de 1990, com a inauguração de novos conjuntos, como o Nova Maré. Em 1992, o conjunto Bento Ribeiro Dantas foi inaugurado para abrigar moradores de outras favelas da cidade que habitavam casas sob risco de deslizamento, inundações ou muito próximas a vias públicas. No ano 2000 foi inaugurado um novo conjunto, o Novo Pinheiro, mais conhecido como Salsa e Merengue. 

Conjunto Bento Ribeiro Dantas, 2002. Foto: Alexandre Dias, Jornal O Cidadão Online

Os conjuntos têm as características das conquistas durante o processo que colocou fim à ditadura militar: a moradia passou a ser vista como um direito fundamental a ser garantido pelo Estado e, por isso, eles foram construídos pela prefeitura, que recebeu atribuição de cuidar de todo o território da cidade — incluindo as favelas. Em 19 de janeiro de 1994, a Maré foi reconhecida oficialmente como bairro pela Prefeitura. Mudança simbólica, já que a própria identidade de bairro foi forjada por muita luta, sem que se abandonasse a ideia de ser favela, com o poder e os desafios que isso traz. 

Foto tirada do Morro do Timbau, de onde se vê a Baixa do Sapateiro, Linha Amarela e Vila dos Pinheiros. Foto: Raysa Castro, Jornal O Cidadão Online

O reconhecimento das favelas como partes da cidade provocou uma mudança fundamental, já que deveriam receber atenção em obras e equipamentos comunitários. A Maré recebeu obras e ações do Programa de Favelas da Cedae, Programa de Eletrificação de Favelas da LIGHT, entre outras, ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000. A rede com 11 Unidades Básicas de Saúde da Maré, as mais de 50 escolas de educação básica — incluindo o Campus Maré das Escolas do Amanhã, construído por ocasião da Rio 2016 — são outros marcos desse processo.

Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Prfª Kelita Faria de Paula. Foto: Ana Cristina da Silva, Jornal O Cidadão Online

A mobilização comunitária também sofreu modificações em seus eixos de luta, e hoje vai muito além da permanência e da urbanização: colocar mareenses nos bancos das universidades, nas mais diversas carreiras; lutar pela arte, cultura, memória; cursos de pré vestibular comunitários; Centro de Artes da Maré, Museu da Maré; ter a Maré como tema de pesquisas dos próprios moradores, exposições e projetos diversos — de vida, de bairro, de lugar, de cidade e de sociedade.

As lutas continuam, por uma Maré que faça parte da cidade como quaisquer outras favelas.