Cidadania, segurança e direitos

Inauguração do Memorial em homenagem às vítimas da violência armada na Maré, 2022. Foto: Douglas Lopes – Redes da Maré.

Se o fim da ditadura trouxe conquistas para a Maré, ainda há sérios desafios a serem superados. Ao longo das décadas de 1980 e 1990 os moradores passaram a viver uma rotina de restrições e medo, com o aumento da violência urbana e o impedimento de sua organização por parte de grupos que disputam o controle do território por meio da violência — muitas vezes com consequências trágicas para os moradores, que são as maiores vítimas desse estado de medo constante. Margô, moradora do Parque União, relembra um passado em que isso não era tão comum:

Não tinha muita criminalidade. Tinha, mas era uma coisa tão bem escondida, que a gente não sabia que existia isso. Eu passei a saber disso de 33 anos para cá. Eu fui descobrindo e eu ficava assustada, porque nunca tinha visto aquilo, a gente andava livre.

 No campo simbólico, os moradores de favelas geralmente são representados na mídia como criminosos — ou, no mínimo, coniventes com a criminalidade presente no território em que vivem. Assim, o Estado passa a ter uma “autorização” de parte da sociedade — em nome da “retomada” do território e do combate à criminalidade — para agir de forma violenta, muitas vezes com resultados letais.

Em nome da segurança pública, permite-se que o Brasil seja um dos 10 países em que mais se mata no mundo (“Apesar de queda em mortes violentas, Brasil é oitavo país mais letal do mundo”, O Globo, 29 de junho de 2022). 

Margô relembra um dia de medo por conta das operações que se tornaram cotidianas na Maré:

Antigamente entrava polícia, carro da polícia. Eram aquelas joaninhas, que era tipo um Fusca. Aí eles faziam a ronda, entrava e saía, mas não ficava aqui, não. Não tinha perturbação de bala. Eles faziam as rondas deles, mas não tinha nada. […] Não tinha de enfrentar morador, nem chegar na rua e sair atirando. Eles entravam de noite, de madrugada. Eles andavam aqui dentro, de madrugada. […] E assim, a polícia entrava aqui, entrava e saía, mas não tinha esse… hoje que tem essa guerra. Entra o caveirão, o caveirão já entra aqui atirando, bombardeando, dando tiro sem mais, nem menos.

Policiais do 18º Batalhão da PMERJ (Jacarepaguá) ao lado dos fuscas conhecidos como “Joaninha”. c. 1990. Foto retirada da página do Facebook da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

A atual geração de ativistas da Maré tem, entre seus principais eixos de atuação, a defesa dos Direitos Humanos, compreendendo que não se pode falar em paz ou em cidadania, naturalizando tanques de guerra, barricadas e fuzis nas ruas da Maré. Ou, ainda, naturalizando que as aulas nas escolas sejam canceladas em função de operações policiais e confrontos. 

Os moradores são obrigados a conviver com tanques de guerra, barricadas e fuzis nas ruas da Maré. Ocupação militar da Maré, 2014. Foto: Site do Exército Brasileiro

Magá, morador da Rubem Vaz, diz que a violência cotidiana é o aspecto que mais piorou na Maré:

Essas operações violentas, violação de casas de moradores. Por exemplo, a gente é sofrido, a gente sai pra trabalhar, deixa nossos filhos em casa, deixa nossos pertences e quando a gente chega, nossa casa está arrombada, está violada. É muita desordem dessa nossa segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

É contra a banalização dessa violência cotidiana, na denúncia da violação de direitos humanos dos moradores, que muitos ativistas e coletivos têm se dedicado. Muitos jovens que despertam para a luta, o fazem a partir da percepção deste, que parece ser o maior desafio da nova geração — ser jovem, negro, mareense e ter direito à vida.

Manifestação na Maré, 2013. Acervo Daniele Azevedo