Fato pouco comentado é que o jornal mais popular do Rio de Janeiro, nos anos da Independência, foi também o mais radical. Redigido pelo comerciante português — mas assumido brasileiro — João Soares Lisboa, o Correio do Rio de Janeiro foi veículo para um ideário político amplo, e um tanto complexo: defendeu um modelo político social que combinava sentimentos republicanos, a legitimidade da soberania popular e a manutenção da monarquia como estrutura política, tudo no mesmo espaço.
O Correio foi o primeiro jornal do Rio de Janeiro a sair diariamente — ou perto disso. Suas quatro páginas — a numeração padrão da época, aliás — eram preenchidas por artigos escritos por João Soares Lisboa. Mas também havia espaço para transcrever correspondências de leitores — dentre eles, Frei Caneca e Hipólito da Costa, críticos notórios da dinastia bragantina — e reproduzir notícias e comentários, publicados por jornais portugueses, sobre os fatos do lado de lá do reino.
Nessa efervescência política em que vivia o Rio de Janeiro, em meados de 1822, o Correio se tornou um árduo defensor de uma causa “brasílica”. Em especial, a defesa de uma assembleia constituinte brasileira: “representemos ao nosso Regente [d. Pedro] que queremos, porque precisamos, já, já e já, Cortes, Cortes, Cortes”. Em maio, mal completados 30 dias de sua estreia, o Correio convocou a população fluminense a assinar um documento, ratificando a Representação do Povo do Rio de Janeiro — um requerimento entregue a d. Pedro, pedindo ao príncipe regente a convocação de uma assembleia constituinte brasileira. Mais de seis mil pessoas responderam ao chamado, e manifestaram seu apoio à proposta, que previa eleições diretas para a escolha dos deputados constituintes. D. Pedro e seus ministros não gostaram nada da proposta.
Em junho de 1822, d. Pedro autorizou a convocação de uma corte brasílica, mas sem as eleições diretas. O Correio do Rio de Janeiro então publicou, num tom um tanto atrevido, suas impressões sobre a decisão do regente: “Ah! Senhor, que fizestes? Uma Assembleia Constituinte em que se acha representada a soberania da nação é superior a vós, e no momento de sua instalação vós deixais de ser príncipe de fato, conservando só vossa dignidade de direito!!!”. E concluiu: “Quem autorizou V.A.R. [Vossa Alteza Real] para mandar o contrário daquilo que lhe Representaram os Povos desta Província?”.
Não foi o primeiro nem o último atrevimento de João Soares Lisboa. Em outubro de 1822, dias depois da aclamação do imperador, assim se referiu a Pedro I: “eis um puro democrata!!!”. Ao imperador, aquilo era um verdadeiro insulto — democracia, à época, era vinculada aos eventos promovidos pela Revolução Francesa. Além disso, numa verdadeira “fake news” da época, atribuiu a d. Pedro uma fala que, com toda certeza, o monarca nunca disse: “O Brasil precisa e deve ser livre para ser feliz, e, se os povos manifestam o geral desejo de serem republicanos, não encontrarão em mim oposição; antes farei quanto puder para que o consigam e eu me contento em ser seu concidadão”.
Por essas e outras, João Soares Lisboa foi alvo de processos movidos por membros da cCorte de d. Pedro. Foi indiciado pelo crime de “injúria atroz”, em agosto de 1822 — provavelmente, o primeiro acusado por abuso da liberdade de imprensa no Brasil. Em outubro, o Correio do Rio de Janeiro seria proibido. João Soares Lisboa passou os meses seguintes entre o exílio e a prisão.
Em 1823, o Correio voltou a circular sob uma condição inusitada. Aos leitores que desejassem uma assinatura do jornal, Soares Lisboa comunicou, no dia 28 de julho: “Este periódico há de continuar diário em números extraordinários […]. Quem quiser subscrever dirija-se à Cadeia, onde atualmente reside o Redator”. Lisboa continuou a tocar seu jornal de dentro da prisão por uma concessão de Pedro I, uma vez que o alvo preferido do Correio era José Bonifácio, o ex-ministro que, no auge de seu prestígio, comandou uma devassa lançada sobre seus opositores — dentre eles, Soares Lisboa —, mas que naquele momento era escanteado por d. Pedro.
Em novembro de 1823, com o fechamento da Assembleia Constituinte, decretada por d. Pedro, vieram novas censuras e deportações. O Correio do Rio de Janeiro e João Soares Lisboa foram novamente alvo das investidas policiais. O jornal foi encerrado de vez, e seu redator sentenciado ao desterro na França — destino que não cumpriu, afinal: aportou secretamente em Pernambuco, em 1824, e ingressou nas fileiras que defenderam a Confederação do Equador. Ao que tudo indica, morreu em combate, naquele mesmo ano.
Referências Bibliográficas
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Maud, 1999.
STARLING, Heloisa Maria Murgel; DE LIMA, Marcela Telles (Orgs.). Vozes do Brasil: a linguagem política na Independência (1820-1824). Brasília: Edições do Senado Federal, 2021.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz.