O suburbano Bloco da Chave de Ouro foi durante pelo menos trinta anos a mais subversiva agremiação do Carnaval carioca. O que deu ao Chave de Ouro uma fama irresistível foi o fato de o bloco desfilar no Engenho de Dentro sempre na quarta-feira de cinzas, em um período em que a igreja condenava os foliões com exortações ao inferno e a polícia reprimia o fuzuê por causa da Quaresma.
Normalmente o cacete comia entre os membros do bloco e os meganhas, com direito ao público, louco para ver o bicho pegar, lotando as calçadas da Rua Borja Reis para acompanhar a confusão. Há quem diga que vários foliões do bloco eram arruaceiros que paravam na cadeia durante o reinado de Momo e só eram liberados nas cinzas. Resolviam, então, brincar no Chave de Ouro para descontar os dias trancafiados no xilindró enquanto a cidade se divertia.
O líder do Chave de Ouro, Luiz Macaco, tinha a tese de que a graça do bloco, e o que dava a ele o apoio de centenas de foliões, era exatamente o desafio aos homens da lei e da fé. Quanto maior a repressão e o conflito generalizado, mais divertido era o desfile. Os homens do poder público cortaram um dobrado para lidar com o Chave de Ouro e não perceberam que a solução era fácil: a graça para os foliões era a subversão da ordem, o drible na proibição e o enfrentamento entre os cassetetes dos policiais e as baquetas dos bumbos.
Bastou o bloco, na segunda metade dos anos de 1970, deixar de ser proibido para que a alegria murchasse e o ziriguidum perdesse o molho. No Brasil há quem pense que santo é somente aquilo que se reveste de amor cristão, caridade e perdão. Entretanto, cruzado a esse entendimento, há na cidade do Rio de Janeiro uma intimidade que se tece no entremeio entre sagrado e profano que faz muita gente ter devoção pela quizumba, batalha ou tantos outros nomes que podemos dar a diferentes modos arruaceiros de praticar o mundo.
O bloco Chave de Ouro é somente um dos bons exemplos de ritos que riscam essa cidade e jogam dendê na batina do padre. O Rio das águas da baía como lago de leite, como diziam os antigos moradores daqui, carrega nas suas águas também marés de dendê, mel e cachaça. Um Rio de flor e faca, afago e esporro, uma cidade em que a quizumba pode baixar no mesmo corpo da poesia e da mandinga, como no caso do bloco dos Arengueiros, que juntou gente como Cartola, Carlos Cachaça e Zé Espinguela e deu origem à Estação Primeira de Mangueira. O Rio dos valentões, malandros bons de briga, maltas, blocos de arenga, rodas de pernada, bailes de corredor e outras formas de esporro que lembram que nessa cidade difícil mesmo é achar quem seja santo.