Projeto Rio: vão remover a Maré?

Na virada da década de 1970 para 1980, além do processo de redemocratização do Brasil, os moradores da Maré vivenciaram outro processo marcante, que impactou diretamente no território — o Projeto Rio. Surgido como um anúncio de erradicação total das favelas, o Projeto Rio acabou se tornando um dos maiores planos de urbanização da história da cidade. Essa mudança de direcionamento foi uma sinalização importante no sentido de reconhecer os direitos dos moradores da Maré, e só foi possível graças à intensa mobilização comunitária, que impulsionava e era impulsionada pelo processo de abertura política nos últimos anos da ditadura militar.

De olho nas eleições e na sobrevida do regime militar, o próprio presidente João Figueiredo visitou a Maré para a implementação do Projeto Rio. Acervo Pastoral de Favelas

Ainda que houvesse alguma ocupação desde o fim do século XIX, a região da Maré se constituiu como um território de favelas a partir dos anos 1940 e, no período, favelas como Ramos, Parque União, Baixa do Sapateiro e Parque Maré eram confundidas como sendo apenas uma, a “favela da Maré”.

O esforço coletivo dos mareenses por aterros, abertura de ruas e permanência de suas casas não era considerado pelo poder público, que inclusive, atuava sistematicamente na produção da precariedade da favela — tanto por omissão quanto pela proibição aos moradores de promoverem obras de reforma no território. Mesmo na Nova Holanda, construída pelo próprio Estado, incidia essa proibição.

As palafitas eram, então, a solução possível, determinada pela incerteza da permanência e pelo não reconhecimento dos moradores da Maré como cidadãos plenos de direitos por parte do poder público. Vanda, moradora da Nova Holanda, explica a proliferação das palafitas: 

Na verdade, a gente não tinha certeza se essas casas eram nossas. Porque a gente começou a perceber deficiência de água, de esgoto, de luz. Tinha muitos problemas, com o tempo. E as pessoas tinham medo de construir, de construir uma em cima da outra. Então, foi avançando, e aí foram construídas as palafitas.

As palafitas foram soluções possíveis, diante da insegurança e incerteza sobre a permanência dos moradores. Fundo Correio da Manhã / Arquivo Nacional

Mas a opinião pública e a gestão da cidade compartilhavam a visão das palafitas como formas de moradia precárias, retrato da pobreza e da falta de condições mínimas de conforto e higiene — algo que deveria, se não acabar, no mínimo sair da vista do restante da cidade.

A imprensa dava conta de noticiar a precariedade da vida nas palafitas da Maré. Jornal O Cidadão. Acervo Pastoral de Favelas

Na década de 1960 o combate às favelas adquiriu proporções maiores, de modo a serem executadas políticas de Estado que se apresentaram como uma perspectiva de extinção total das favelas. Primeiro com Carlos Lacerda como governador da Guanabara (1962-65), que removeu moradores de favelas da zona sul e os levou para as distantes vilas Kennedy, Aliança e Esperança, e também para a Nova Holanda. Na gestão de Negrão de Lima (1965-71), a Coordenação de Habitação de Interesse de Área Metropolitana do Grande Rio (CHISAM) prometeu acabar com todas as favelas do Rio. O programa  durou de 1969 a 1973 e, na ocasião, favelas grandes e antigas foram removidas — por vezes, violentamente. Moradores das favelas da Praia do Pinto, Catacumba e Macedo Sobrinho foram transferidos para conjuntos na zona oeste da cidade, como Cidade de Deus, Cidade Alta, Padre Miguel e Antares.

O incêndio “sem motivos aparentes” foi uma das ferramentas do poder público para conseguir remover os favelados de seus territórios. Incêndio na Maré, 1967. Foto: Milton. Fundo Correio da Manhã / Arquivo Nacional

Essas remoções ainda estavam frescas na memória dos moradores da Maré quando o Ministério do Interior anunciou, em fins da década de 1970, a intenção de sanear toda a orla norte do Rio — do Caju até a divisa com Duque de Caxias. Embora o governo federal apresentasse o programa como uma urbanização, o anúncio de que a avenida Brasil seria duplicada e as constantes reportagens destacando as palafitas e a pobreza das favelas da Maré fazia com que moradores desconfiassem das intenções das autoridades. 

Na Carta de Favelados ao Papa João Paulo II, escrita em 1º de julho de 1980, por ocasião da visita do Papa à cidade, o medo das remoções é explícito:

Lembramos ao Papa que ainda hoje milhares de favelados continuam ameaçados pela remoção: há o caso especial da favela da Maré, onde um projeto governamental — O Projeto Rio — pretende atingir 250.000 moradores que não foram sequer ouvidos pelas autoridades responsáveis. [Arquivo da Pastoral de Favelas].

Assim, com razões de sobra para desconfiar, as lideranças das favelas da Maré criaram a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), que tinha como presidente Manoelino Silva. Conhecido como Manolo, ele também presidia a Associação de Moradores do Parque Maré, que reivindicavam a permanência dos moradores no local. Após essa intensa mobilização, os moradores conquistaram nos anos seguintes e com o Projeto Rio a urbanização do território, instalação de água, saneamento, serviços de eletricidade, escolas e postos de saúde.

 “Carta Aberta da Codefam às autoridades federais, estaduais, municipais e ao povo do nosso estado” (Minuta) c. 1979. Acervo Atanásio Amorim